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quarta-feira, 30 de maio de 2018

O SUJEITO DO ORELHÃO...

 
Todo dia ele repete a cena. Chega na esquina. Rosto fechado. Coloca a mochila junto ao poste e liga pelo orelhão. E como fala alto! Muito alto. Todos no prédio escutam, principalmente eu, no terceiro andar, com a janela dando pra rua.
Na primeira vez que ouvi o sujeito, ele discutia fortemente com o patrão. Tinha um dinheiro pra receber e parece que a coisa estava difícil. No fim da conversa, declarou que a situação ia ficar preta, e ameaçou- o duramente, caso o tal dinheiro não chegasse a tempo. Só aliviei quando ele bateu o telefone, pegou a mochila junto ao poste e partiu.
Passados mais uns dias e ouvi a voz do tal homem. Agora falava com a filha. Dizia: eu sei, eu sei, mas não vai dar. Não posso este mês. Tenho umas coisas pra resolver. Mês que vem eu vou tentar. Não chora não. Um beijo do pai. Mais uma vez, vi o homem deixar o orelhão, pegar a mochila e partir...
Na semana passada foi mais engraçado, ele ligou para o delegado. E dava grandes broncas. Dizia que estava sendo prejudicado e que assim não era possível! Pedia ajuda ao delegado, senão o caldo iria engrossar...
Eu estava saindo do prédio e perto da guarita sorri para o meu porteiro que vendo o homem já ao longe, emendou... esse aí é o maluco do orelhão! Vem todo dia aqui. Todo mundo já conhece o coitado. Fala com a filha, com a mulher, pede dinheiro emprestado e hoje deu bronca no delegado... Imagina se fosse de verdade!
Sorri levemente e fui seguindo pela rua, achando mais do que graça, uma baita tristeza e consternação. Quem sabe, o maluco do orelhão tenha encontrado o único jeito... de fugir da solidão!


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EM BREVE...   MAIS ETAPAS DE LANÇAMENTO DOI LIVRO "INESPLICANDO"

E BATE PAPO COM AUTOR!

AGUARDE!

quarta-feira, 16 de maio de 2018

NUM PISCAR DE OLHOS


                         

Foi numa quinta de manhã. Na hora de ler a minha receita preferida. Aquela da página toda amarrotada. Com marcas de gordura e chocolate em barra. A folha mais manuseada do caderninho, guardado com carinho e a sete chaves na gaveta da cozinha. 
Olhei firme para a página e todas as letrinhas, tal qual os ingredientes do bolo, haviam se misturado num liquidificador. O texto todo, repleto de medidas, itens e pequenos parágrafos se transformou num único grande bloco. Nebuloso e compacto. Ilegível e incompreensível, feito um texto em aramaico!
Esfreguei os olhos e afastei a mão que segurava o papel. Afastei mais. E mais um pouco. Fui perto da janela. Quase peguei uma lanterna. Veio então a constatação... não conseguia ler mais! De um dia pra outro. Num piscar de olhos. Eu não mais enxergava letrinhas e coisinhas miúdas. E elas são tantas... Nos rótulos. Nas bulas. Nas tampas. Contratos e boletos a pagar...
Dr Lucianao, meu oftalmologista, disse que é assim, um grauzinho por ano depois dos quarenta. Ele estava certo. Meu olho esquerdo já passou dos três. A coisa é rápida. Mas o que é rápido mesmo? Relativo, responderia o sábio cientista judeu-alemão, mostrando a língua com toda razão. 
Por trás de cada mudança, um processo interno e particular de perdas e transformações já vem engatinhando. Muitas vezes, silencioso e invisível. Porém contínuo e implacável. Inevitável com o correr dos anos.
Nascemos, crescemos, criamos filhos. Escolhemos caminhos. Acertamos. Erramos. Voltamos e recomeçamos. E assim seguimos, cambaleantes e exaustos. Com alguns sustos e sobressaltos.
Então, feito fruta madura, numa tarde dura, a gente amadurece e cai. Não dá pra saber quando vai. É o ponto xis. O piscar de olhos! É quando de repente nos percebemos mais velhos. Mais feios. Mais arqueados. Mais sábios, talvez...
Porém ingênuos. Acreditamos que tudo foi... num piscar de olhos! Ah vai...


foto: cromossomosblog 
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